João de Deus (Contos de Passagem)

Ouvia o sino tocar. Aquelas pernas andadas precisavam de uma terceira de madeira para caminhar. Seu pouco cabelo grisalho sentia a tarde indo embora há sessenta décadas. Sempre pegara o banquinho, fora até a pequena praça, vira jovens e crianças gozarem da vida. Sempre recordava os momentos agradáveis que vivia. Não importava se a boa coisa tivesse acontecido há três minutos atrás. Ou se tivesse ocorrido há muitos anos. Ele sempre sentava no mesmo banquinho solitário e lembrava. Como era bom lembrar. Algumas vezes ria, outras comentava dando opinião a si próprio, e raramente chorava.

Ultimamente recordava a sua infância, sua juventude, seus amigos. Tudo isso havia acabado e não renascia mais. De uns tempos pra cá, aquilo se tornara desagradável e rotineiro. Ele, digo, o senhor sentado, era sedentário da vida e viciado no passado. Sua mulher morreu esquecida, seus filhos não o encontravam em casa, seus amigos cansaram de chamá-lo para sair, e a vida estava sem vida. E foi num longo suspiro, num desabafo sem voz, que ele fechou os olhos no banquinho e lá já não respirava e seu coração parou fisicamente. Emocionalmente havia parado há anos.
O epitáfio: "Aqui, João de Deus. Somente Dele e da saudade. Só tenho piedade do que ele lembrará de onde esteja. Sentirá saudade da saudade que sentia."

2 comentários:

  1. Medo Ravi.Medo de viver plenamente algo que talvez possa te machucar.
    Talvez seja isso essa saudade toda.

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  2. pqp..
    que texto lindo..
    eu me imagino assim na velhice
    com saudade de sentir saudades..
    alguém solitário e sem amor, sendo consumido pela lembrança..

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