— Às vezes o mundo me dá uma sensação de que eu não vivo nele. É como se as luzes não existissem nos meus olhos. Não que eu seja míope, eu vejo muito bem. Mas eu acho que sofro de alguma resistência à luminosidade do mundo. As luzes me espantam. A época festiva que menos gosto é a do Natal. Não sei onde conseguem encontrar tanta luz. De repente, não me sinto desse mundo.
— Entendo. Mas não acredito que você me tirou da cama às três horas da manhã pra falar do seu receio de ser um E.T.
— Não, de maneira alguma. É que eu precisava contar-lhe isso agora. As coisas e os sentimentos me vêm a cada instante e preciso contar a alguém. Chamei você aqui
pela sua ajuda.
— Minha ajuda? O que é dessa vez? Se for dinheiro emprestado pra comprar essas porcarias que você cheira, eu vou embora nesse minuto!
— Não é nada disso. Tem uma coisa meio confusa na minha vida, daquelas inesperadas e sem graça. E eu tenho certeza que o negócio das luzes tem haver.
— Eu não ‘tô’ entendo nada! Poderia ser mais direto? Eu dormi às onze horas hoje e, por incrível que pareça, ainda tenho sono.
— Espera um minuto. Vou acender um cigarro.
...
— E você? Você tentou dormir, por acaso? Dormir, às vezes, é tão bom quanto tomar esses seus comprimidos.
— Tenho insônia. Quando fecho os olhos vejo muitas luzes. Parece o centro de uma grande cidade. São carros, lojas, postes acesos. Prefiro ficar acordado e apagar a luz de casa.
—Pois é, todavia eu não tenho insônia e não posso ficar aqui o tempo todo. Tenho que ir pra cama. Cama, você conhece?
— Então, já que você insiste, vou direto ao assunto. Preciso que me ajude a encontrar minha luminária.
— E pra quê você quer mais dois braços e duas pernas? É cotó?
— Se meus olhos forem ao encontro da luz, eu enlouqueço. É como se a lucidez me pegasse de jeito e a dose de vodka tivesse dissolvido. Eu enxergo tudo com a luz. Eu preciso da luminária, porque perto dela tem uma caixinha importante.
— Esta é a coisa mais absurda que eu já ouvi. Preferia que você tivesse me tirado da cama pra me pedir dinheiro. Mas já que estou acordada mesmo, vou fazer esse favor ao E.T.
— A luminária está debaixo da cama no quarto. Leve a vela.
...
— Aqui está a caixinha. A lâmpada da luminária estava quebrada.
— Eu sabia.
— O quê? Eu devo ser uma idiota completa. Vou-me embora. Boa noite.
— A noite tem luzes. Não gosto da noite. Ela me aparenta lucidez.
— O que você ta fazendo enrolando esse papelzinho aí? Eu digo ‘boa noite’ e ainda continuo aqui ouvindo suas baboseiras.
— Não gosto da luz, mas do cheiro. O cheiro não me deixa lúcido. E reconheço que sou desse mundo com o cheiro. Você salvou minha vida, vindo aqui. Ah, o cheiro...

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